quarta-feira, 28 de abril de 2010

Introdução




A Cocaína é proveniente de duas plantas, a Erythroxylon coca, existente na Bolívia e a Erythroxylum novogranatenses. Cada folha possui um conteúdo de cocaína que varia de 0,5 a 1,2%. Apesar de existir o hábito de mastigar as folhas, comum nos dias atuais entre os índios bolivianos, os usuários de outros países costumam usá-la sob a forma de Cloridrato de Cocaína (cocaína em pó) e Pasta-Base de Cocaína (conhecida sob a forma de Crack, “Merla”, pitillo e brazuco), o que exige que as folhas passem por processos químicos de precipitação e de refinamento (12).
No conjunto das drogas, a cocaína é classificada como um psicoanaléptico ou estimulador de atividades psíquicas. Isso a coloca junto às anfetaminas, ao tabado e à cafeína, que aumentam o estado de alerta e de atenção e suprimem o sono e a fadiga (12).
Cloridrato de Cocaína possui aspecto de cristais brancos, escamosos, sabor amargo e provoca anestesia gustativa (8). Os traficantes geralmente a misturam com outras substâncias tais como talco, açúcar, procaína (anestésico local de composição parecida), ou estimulantes como as anfetaminas.
A Forma Base se refere a um composto que não foi neutralizado por ácidos para produzir Cloridrato de Cocaína. É pouco solúvel em água, mas se volatiliza a uma temperatura relativamente baixa (95°C). Por outro lado, o Cloridrato de Cocaína para se volatizar necessita de altas temperaturas (195°C), o que, ao contrario da Forma Base, a impede de ser “fumada” (8). A Forma Base é muito tóxica devido à adição de ácido sulfúrico, querosene ou gasolina e de amoníaco à solução aquosa de Cloridrato de Cocaína na presença de Bicarbonato de Sódio. Depois de seca tem a aparência de porcelana e recebe a nominação de Crack, devido ao som que se escuta quando essa mistura é fumada. O seu uso se incrementou nos últimos tempos por ser mais barata e por atingir o cérebro duas vezes mais rápido do que a cocaína injetada, além de proporcionar o dobro de euforia. Isso se deve ao fato de não ser metabolizada por enzimas presentes na corrente sanguínea, como ocorre com a cocaína usada por via endovenosa (4).

Formas de Uso





A cocaína é observável pelo fato de essa droga e suas derivadas (cocaína aspirada, cocaína intravenosa, crack e “merla”), de acordo com o United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), apesar de ser substancialmente menos consumida do que a maconha, constituírem o principal fator responsável por internações por dependência no Brasil, abrangendo 59,4% do total da demanda por tratamento (1).
Existem diversas formas por meio das quais a cocaína pode ser inserida no organismo. Todavia, três delas possuem uma maior relevância em nosso contexto social: o intranasal, a endovenosa e a inalada. O Consumo Intranasal é talvez a forma mais comum de uso da cocaína. A droga, adquirida nas ruas ou em pontos-de-venda conhecidos como “bocas”, em forma de pó (Cloridrato de Cocaína), é colocada sobre um espelho ou alguma superfície plana (7).
O uso endovenoso é aquele realizado por meio de injeções, que fazem com que a droga (cocaína em pó) entre imediatamente em contato com o sangue. Os efeitos dessa forma de uso são os mais veloses e intensos do que os que ocorrem pela via intranasal. Uma sensível diminuição dessa forma de utilização, entretanto vem sendo observada por alguns pesquisadores, o que provavelmente se deve aos problemas de saúde relacionados ao uso endovenoso, em especial a contaminação pelo vírus HIV (mas não só este, pois existem múltiplos casos relatas de transmissão de outras doenças, tais como a Hepatite C e a Malária) (10).
A existência de diferentes métodos de uso se deve a três fatores: as dificuldades por parte dos traficantes em obter uma ou outra substância usada no processo de refino dessa droga, a necessidade do usuário em obter um maior efeito sobre seu organismo com a mesma quantidade de droga e os interesses dos traficantes em aumentar a sua lucratividade (10).
Existem dois métodos que envolvem a síntese da cocaína. No primeiro, ela é extraída da folha da coca e refinada por processos químicos. Para isso são pisoteadas conjuntamente folhas, água, alcali e querosene. A mistura resultante é precipitada, obtendo-se o que é denominado “pasta-base” ou “pasta de coca”. Essa pasta é refinada com acetona ou éter para obtenção da cocaína em pó, que, na verdade constitui o cloridrato de cocaína (10).
No segundo métoco, as folhas ou a pasta de coca são transformadas por meio da adição de outras substâncias, tais como ácido clorídrico e solventes, obtendo-se o que se chama de “base livre”, “cocaína básica”, “crack”. A “base livre” pode ser transformada posteriormente em cloridrato de cocaína, de acordo com os interesses dos traficantes de drogas ou pode ser fumada como crack (10).

Biotransformação da Cocaína

Após um periodo de cerca de 30 minutos, em que não se observa a droga no sangue, a absorção gastrointestinal aumenta a rapidez e o pico plasmático é atingido num período de 45 a 90 minutos. Este retardamento inicial é explicado pela ionização da cocaína no meio ácido do estômago, que é superado graças à neutralizaçãi do quimo ácido pelas secreções pancreáticas e biliares no intestino delgado, local onde a forma não-ionizada da droga prevalece, determinando, assim, uma maior velocidade de absorção (2).
Uma vez absorvida, a cocaína liga-se a proteínas plasmáticas com maior afinidade pela α-1-glicoproteína ácida e com menor afinidade pela albumina, porém significativa. A fração livre da droga corresponde a cerca de 67 a 68% da quantidade absorvida, podendo variar de acordo com a mudança de pH, apresentando velocidade de distribuição relativamente rápida. Em seguida, ocorre acúmulo da cocaína no fígado, provavelmente pela presença de receptores nos hepatócitos com elevada afinidade pela droga, e no cabelo, supostamente por difusão passiva para o folículo piloso. A lipossolubilidade da cocaína é responsável pela transposição da barreira hematoencefália (2).
A cocaína, após sua absorção, é amplamente distribuída por todo o organismo. Seu volume de distribuição varia entre 1,5 a 2L/Kg (57% por via oral e aproximadamente 70%, quando fumada) (2).
Em relação a eliminação da cocaína, ela é predominantemente controlada pela biotransformação, que ocorre rapidamente por enzimas séricas e hepáticas. Os produtos de biotransformação eliminados na urina incluem Benzoilecgonina (15 a 50%); Ecgonina Metil Éster (15 a 35%); Ecgonina (1 a 8%); Norcocaína (2-6%) e na forma inalterada (cerca de 3%) (2).
A Benzoilecgonina é formada por meio da hidrólise espontânea ou pela ação das enzimas carboxilesterases. A formação da Ecgonina Metil Éster ocorre pela hidrólise do grupo benzoato catalisada pelas colinesterases plasmática e hepática. A Ecgonina é formada pela consecutiva hidrólise de pequenas quantidades de Benzoilecgonina e Éster Metilecgonina, enquanto a modificação da cocaína, que resulta na Norcocaína, é mediada pelo Citocromo P-450. A Norcocaína é o único produto de biotransformação farmacologicamente ativo (2).
Um outro produto que pode ser encontrado em usuários que fazem uso concomitante de álcool e cocaína é o Cocaetileno, resultado da etil transesterificação mediada pelas carboxiesterases. Esta substância apresenta muitas das propriedades da cocaína, incluindo aquelas relativas às ações centrais, ou seja, possui ação farmacológica comparável à cocaína ou até mais potente do que ela (2).

Farmacodinâmica

Os efeitos farmacológicos mais relevantes da cocaína situam-se no sistema nervoso central, uma vez que promove ações estimulantes responsáveis pela instalação da dependência. Isso decorre da inibição da recaptação de dopamina, por bloqueio da proteína que a transporta, elevando dessa maneira, a concentração sináptica desse neurotransmissor nos circuitos neuronais que integram o sistema de recompensa cerebral. Como consequência de tudo isso, se estabelece uma intensa compulsão, claramente ilustrada pelo fato de os dependentes, frequentemente, violarem tabus sociais para obter a droga (6,9). A cocaína também inibe a recaptação de serotonina (5HT2) e noradrenalina (NA), além de interferir nos sistemas de neurotranmissões que envolvem endorfinas, acetilcolina e sistema gabaérgico. Ao atingir o sistema nervoso central, seus efeitos são imediatos e possuem uma duração relativamente curta, entre 30 e 60 minutos (5).
A cocaína em forma de crack é absorvida de forma mais rápida pelo organismo. A diferença entre a intensidade e a velocidade dos efeitos da cocaína, de acordo com a forma de utilização, pode ser explicada pela trajetória que cada um desses caminhos exige para atingir o SNC. Isso porque os gases provenientes da combustão são absorvidos de modo instantâneo pelo álveolos pulmonares, passando para o coração e dali para o cérebro (10).
Isso torna os efeitos do crack muito mais rápidos que os obtidos pelos outros métodos, pois na via injetável essa droga acompanha o sangue venoso pela veia cava até o lado direito do coração, passando daí para o pulmão, a seguir para o lado esquedo do coração e dirigindo-se então para o cérebro. Já o efeito da droga mediante a utilização das mucosas é bem mais lento, pois elas primeiro absorvem a substância, para depois enviá-la ao sistema circulatório (10).
Em consequência desses aspectos farmacocinéticos, a forma intranasal tende a demorar de dez a quinze minutos para fazer efeito no sistema nervoso central, a endovenosa entre três e cinco minutos e a pulmonar entre dez e quinze segundos (10).
No que se refere os efeitos da intoxicação (originados por um único episódio de uso) a cocaína estimula artificialmente o Sistema Nervoso Simpático. Este é uma parte do Sistema Nervoso Autônomo, responsável por preparar o organismo para o enfrentamento de situações de perigo ou stress. O batimento cardíaco, pela ação do Sistema Nervoso Simpático, torna-se bastante acelerado; a pressão arterial e a temperatura corporal aumentam; a necessidade de sono e apetite diminuem e a pessoa entra em estado de alerta (7).
Os relatos dos usuários acerca dos efeitos subjetivos originados pelo uso incluem: excitação, euforia, maior percepção sensorial, diminuição do cansaço, do apetite e do sono; aumento da autoconfiança, da auto-estima; ansiedade e delírios persecutórios (5,7). Assim, os efeitos agudos da cocaína incluem sintomas clínicos e mudanças compornamentais (5).
A maioria dos usuários de cocaína não preenche os critérios para o diagnóstico de depressão. Suscede a um grande consumo desta substância um estado de protação, que pode ser acompanhado de ideação suícida, imitando totalmente uma depressão com melancolia, exceto pela sua breve duração. Este fenômeno se deve à depleção abrupta que o uso abusivo e prolongado de cocaína causa, tanto da dopamina sináptica, quanto das reservas de feniletilamina (FEA), que é um análogo endógeno da cocaína (6). Isto esplícita, em parte, a instalação do complexo mecanismo da dependência química e da necessidade do uso repetitivo desta subtância, assim como o intens sofrimento psicológico causado pela privação da mesma (4).
Os efeitos gerais do seu uso incluem doenças cérebro-vasculares (isquemias e infartos hemorrágicos), convulsões, complicações cardiovasculres (infarto do miocárdio e arritmias) e depressão respiratória, entre outros (12).
A excitação sexual que acompanha o seu uso se deve ao impacto no sistema dopaminérgico, além de um rápido incremento na produção de costicotropinas e de hormônio luteinizante. Juntos, esses mecanismos atuam no sistema de compensa cerebral, com aumento das percepções prazerosas e uma diminuição dos fatores estressantes. Porém, o seu uso crônico pode causar uma desregulação da propriedade da dopamina de inibir a secreção de prolactina (8).
O uso de cocaína na gravidez dobra o risco materno-fetal de desenvolver transtornos cardio-tóxicos, além de reduzir o fluxo sanguíneo para a placenta, aumentando a resistência vascular uterina e alterando os níveis de oxigênio fetal, uma das causas de placenta prévia e de aborto espontâneo. No feto pode causar infarto cerebral, retardo no crescimento, enterocolite necrosante, alterações cardíacas e defeitos no tubo neural. Após o nascimento, essa criança tende a uma resposta ventilatória diminuída ao dióxido de carbono com o aumento do risco de morte súbita (8,11).
A utilização das mucosas como a das narinas (uso intranasal), da boca, dos órgãos sexuais, do fórnix conjuntival e do ânus, dá origem a algumas patologias particulares. Isto porque a cocaína estimula a constrição dos vasos sanguíneos dessas regiões e o uso contínuo causa irritações nas mucosas, o que pode resultar em sangramentos, ulcerações e, no caso do uso intranasal, até perfurações do septo nasal (12).

Síndrome de Abstinência

Em 1996, Gawin e Kleber propuseram o primeiro modelo de apresentação e evolução clínica da síndrome de abstinência da cocaína (3). Dividiram-na em três fases:


1) Crash: Refere-se ao estado de humor disfórico do usuário que se instala após a interrupção do uso e pode se prolongar por cerca de 4 dias. Ocorre depressão, insônia, irritabilidade, ansiedade e fadiga. A compulsão é intensa e dominui ao longo de 4 horas. Segue uma necessidade de sono (hipersonia), que tem duração de vários dias, normalizando o estado de humor.


2) Abstinência: Pode durar até 10 semanas. A compulsão por cocaína persiste com irritabilidade, ansiedade e incapacidade de sentir prazer (um sintoma marcante nesse período). Progressivamente desaparece a memória da euforia provocada pela droga. No entanto, situações e presença de fatores desencadeantes de fissura normalmente superam o desejo de abstinência e as recaídas são comuns nesta fase.


3) Extinção: Desaparecem os sinais e sintomas físicos. A compulsão é o sintoma residual que aparece eventualmente, conddicionando a lembranças do uso e seus efeitos psíquicos. Seu desaparecimento é gradual e pode durar meses ou anos

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Tratamento

A dependência é complexa por ocasionar alterações biológicas no cérebro e consequentes transtornos psicossociais. Por isso, o tratamento para a dependência é igualmente complexo e deve se dirigir a uma variedade de problemas.

Tratamento Farmacológico – Intoxicação Aguda por Cocaína
O tratamento medicamentoso na agitação severa, ou delírios, é suportivo e sintomático. Tanto a agitação como as convulsões podem responder favoravelmente ao emprego de benzodiazepinas, por reduzirem a irritabilidade do SNC e preferíveis ais antipsicóticos, que diminuem o limiar compulsivo. Se a agitação persistir e se desenvolver sinais de toxicidade por benzodiazepínicos poderá ser prescrito um antipsicótico de alta potência, como haloperidol 2 a 5mg por via oral ou intravenosa. Deve-se evitar lidocaína e procaína, pois apresentam semelhança farmacológica com a cocaína (12).

Referências Bibliográficas

1) Brasil: Perfil do País - Escritório Contra Drogas e Crime das Nações Unídas (UNODC), 2004, Escritório Regional do UNODC no Brasil.

(2) COSTA, S.H.N. Uso de drogas psicotrópicas por policiais militares de Goiânia e Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil. Rese de Doutorado, Universidade Federal de Goiás, 2009

(3) GAWIN, F.H.: KHALSA, M.E.; ELLINWOOD, E.E. Estimulantes In: GALANTER, M.; CLÉBER, H. Tratamento de los transtornos por abuso de substâncias. Barcelona: American Psychiatric Press, 1997.

(4) KANDEL, D.; DAVIS, M. High school students who use crack and other drugs. Archives General Psychiatry. V. 53, p. 71-80, 1996

(5) KAPLAN, H; SADOCK, B.; GREBB, J. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. Tradução de Dayse Batista – 7a Edição – Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.

(6) LARANJEIRAS, R. NICASTRI, S. Abuso e dependência de álcool e outras drogas. In: ALMEIDA, O.O.; DRACTU, L.: LARANJEIRAS. Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1996. p. 97-102.

(7) LEITE, M. C.. História da cocaína. Em M. C. Leite & A.G. Andrade (Orgs.), Cocaína e crack: dos fundamentos ao tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. p. 15-23.

(8) LOWINSON, J.H., et. Al. (Eds.). Substance abuse: a comprehensive textbook. 3. Ed. Philadelphia: Williams & Wilkins, 1997. p. 222-235

(9) LORENZO, P. et al. Drogodependencias: farmacologia, patologia, sicopatologia, legislación. Madrid: Editorial Medica Panamericana, 1999. p. 113-134.

(10) NAPPO, S. A.. Baqueros e craqueros: Um estudo etnográfico sobre consumo de cocaína na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado, Universidade Federal de São Paulo, 1996.

(11) NICASTRI, S. Fluxo sanguíneo cerebral em dependentes de cocaína: relações entre psicopatologia e neuroimagem. Tese (Doutorado) – faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. 210 p.

(12) SEIBEL, S.D.: TOSCANO, A.J. Dependência de Drogas. São Paulo: ATHENEU, 2001

Sites Utilizados:

Google

National Institute on Drug Abuse

National Library of Medicine, NIH

PubMed

Sociedade Brasileira de Toxicologia